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Bitcoin: da euforia ao choque de realidade

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O Bitcoin, criado no fim da década passada, tem como principal inovação o blockchain, tecnologia que permite a descentralização de registros com a segurança da criptografia. O registro descentralizado permite transferência de bitcoins sem a interferência de terceiros e de maneira semi-anônima, de maneira análoga aos pagamentos realizados com papel-moeda.

 

De acordo com estimativas da KPMG, mais de 200 mil varejistas de diversos países aceitam bitcoins. Entretanto, diferentemente do papel-moeda, não há uma entidade emissora. A função de reserva de valor seria assegurada por um limite absoluto de emissão de 21 milhões de unidades de bitcoins, contra pouco mais de 17,2 milhões já emitidos. Para muitos entusiastas, a possibilidade de desempenhar funções de meio de pagamento e reserva valor, combinada com a ausência de uma entidade emissora tornaria o Bitcoin superior à moeda.

Para que novas transações sejam adicionadas à cadeia, é necessário agrupá-las em blocos de cerca de 2 mil transações  e submetê-los à validação por nós na rede. A prevenção de ataques cibernéticos se dá por meio do protocolo prova de trabalho: a adição de novos blocos depende da resolução de um enigma cuja solução somente pode ser encontrada por tentativa e erro.

Quem consegue decifrar o enigma e inserir um novo bloco à cadeia é remunerado com novas unidades de bitcoins e/ou tarifas. À criação de novas unidades, dá-se o nome de mineração. Pelo desenho do sistema, o nível de dificuldade dos enigmas e a recompensa por sua solução são ajustados automaticamente e periodicamente para tornar o retorno esperado da atividade de mineração economicamente mais atrativo que o de hackers.

Atualmente, o nível de dificuldade desses enigmas é superior a 6 trilhões de vezes o patamar inicial, tornando as transações extremamente seguras.

A euforia com os bitcoins possibilitou o surgimento de diversas criptomoedas e tokens e as ofertas iniciais de criptomoedas (cuja sigla em inglês é ICO) já captaram mais de 20 bilhões de dólares. O bitcoin, cuja cotação inicial era da ordem de centavos de dólar, chegou a ser negociado, no fim do ano passado, a quase 20 mil dólares a unidade.

Embora  ainda seja a criptomoeda mais importante, correspondendo a mais da metade do estoque  em circulação, em agosto de 2018 havia mais de 1,8 mil criptomoedas e tokens, correspondendo a um valor de mercado de mais de 200 bilhões de dólares. Passada a euforia, a unidade de bitcoin está cotada a menos de 6,5 mil dólares, cerca de um terço da máxima histórica.

Embora se fale em moeda sem intermediários, o mercado de criptomoedas tem uma extensa cadeia de intermediação, incluindo mineradores, corretoras, bolsas de valores e provedores de serviços de carteira. A atuação de hackers costuma ocorrer nesses intermediários em decorrência de serviços adicionais ofertados aos clientes, mas não há notícia de êxito na atuação na cadeia de transações, ou seja, o blockchain em si é bastante seguro.

Embora a segurança seja a principal vantagem do bitcoin, isso se dá a um custo elevado: atualmente, a mineração demanda forte capacidade computacional, o que por sua vez resulta em elevado e insustentável consumo de recursos computacionais e energéticos. Uma única transação consome mais de 900 Kwh de energia elétrica, o suficiente para quase 500 mil transações com o cartão Visa.

Por essa razão, a mineração é uma atividade que, embora competitiva, é altamente concentrada: nos 12 meses encerrados em julho de 2018, os cinco maiores mineradores foram responsáveis por dois terços da adição de novas unidades de bitcoins.

Há também uma concentração territorial em países com energia barata e clima frio, um diferencial para a refrigeração de computadores. Em países pequenos, o impacto da mineração pode ser devastador: a Geórgia, pequena ex-República Soviética, passou de exportador a importador líquido de energia devido ao aumento do consumo de energia elétrica acarretado pela mineração de bitcoin.

O Ethereum, segunda criptomoeda em capitalização de mercado, visa a resolver parte do problema ao substituir a validação por prova de trabalho pela de prova de conceito. Neste caso, a probabilidade de validação de um bloco de transações é proporcional à quantidade de criptomoedas desembolsadas pelos nós da rede, de modo que participantes com maiores quantidades de criptomoedas possuem maior retorno esperado, uma espécie de prêmios para quem adianta mais recursos próprios.

O resultado é um consumo de energia por transação de aproximadamente 80KWh, menos de um décimo do consumido por transação com bitcoins, mas quase 50 mil vezes o consumo energético de uma transação com cartão Visa.

Em agosto de 2018, a mineração de Bitcoin e Ethereum, que representam cerca de dois terços do valor do estoque de criptomoedas em circulação, consumia quase 93,9 TWh de energia elétrica, mais do que o Paquistão, país que recentemente ultrapassou o Brasil no posto de quinta maior população mundial.

Outras tentativas de contornar o elevado consumo de energia elétrica aprofundam a intermediação: o ripple, terceira criptomoeda em capitalização de mercado, restringe o acesso ao blockchain a um número limitado de instituições financeiras e a lighteningnetwork agrupa operações de menor valor ao bloco submetido para liquidação de modo análogo aos arranjos de pagamento e operadores de cartões de crédito, mas com risco de contraparte de difícil mensuração.

Outro problema grave do bitcoin é o número limitado de transações liquidadas por segundo. Cada bloco tem em média 2 mil transações e leva quase dez minutos para ser processado, resultando em uma capacidade de processamento de pouco mais de três transações por segundo.

O recorde histórico, atingido na primeira semana de 2018, foi de menos de cinco transações por segundo. Por essa razão, são frequentes atrasos nas liquidações, inviabilizando o uso  em larga escala. Para se ter uma ideia do que isso representa, Visa e Mastercard processam mais de 2 mil transações por segundo.

O Sistema de Transferência de Reservas, operado pelo Banco Central do Brasil e restrito a pouco mais de duzentos participantes, operou em média 6,9 transações por segundo entre agosto de 2017 e julho de 2018. Como as operações não são distribuídas uniformemente ao longo do dia, a escala do bitcoin não serve sequer para atuação como sistema de pagamentos de atacado no interbancário brasileiro.

Ao contrário do que se pode pensar, tal problema é de difícil solução, pois para manter o nível de segurança, o nível de dificuldade para se adicionar um novo bloco à cadeia de transações é aumentado periodicamente, de modo que o Bitcoin é intrinsecamente não escalável.

As criptomoedas também possuem volatilidade de preços superior às moedas dos países avançados e emergentes. O bitcoin, uma das criptomoedas menos voláteis, têm variações diárias bastante superiores ao Ibovespa. Isso tornaria o processo de descoberta de preços extremamente custoso e ineficiente em uma hipotética economia baseada em Bitcoins.

A descentralização também é relativa: estudo realizado pelo Credit Suisse constatou que 4% dos endereços possuem 97% dos bitcoins, ao passo que 86% dos endereços têm apenas 0,6% dos bitcoins, de modo que ajustes marginais nas carteiras dos endereços com mais Bitcoins podem causar grandes variações nas cotações.

Portanto, o elevado custo energético, a dificuldade de escalabilidade e a volatilidade de preços impedem que o Bitcoin seja um substituto crível das moedas estatais. Além da concentração de propriedade, as soluções apontadas para diminuir o consumo energético e aumentar a escalabilidade apontam para a direção da intermediação financeira, oposto ao que os idealizadores do bitcoin desejavam.

Por outro lado, o blockchain tem se mostrado bastante seguro e sua incorporação poderá trazer ganhos significativos de eficiência para grandes conglomerados do sistema financeiro.

Artigo originalmente publicado aqui e cedido gentilmente ao Cryptowatch.

* Bacharel em Economia (Unicamp), bacharel, mestre e doutorando em Direito (USP), Analista do Banco Central do Brasil

 

 

 

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